“Ficaram em silêncio.
- Nunca falei tanto, disse Lóri.
- Comigo você falará sua alma toda, mesmo em silêncio. Eu falarei um dia minha alma toda, e nós não nos esgotaremos porque a alma é infinita. E além disso temos dois corpos que nos será um prazer alegre, mudo, profundo.
Lóri, para a surpresa encantadora de Ulisses, enrubesceu.
Ele examinou-a profundamente e disse:
- Lóri, você está vermelha e no entanto já teve cinco amantes.
Ela abaixou a cabeça, não em culpa, mas numa infantilidade de criança que esconde o rosto. Foi o que Ulisses pensou e seu coração bateu de alegria. Porque ele estava infinitamente mais adiantado na aprendizagem: ele reconhecia em si a alegria e a vitória.
De novo ficaram em silêncio. Como se sentisse que haviam falado mais do que ela no presente, poderia suportar, Ulisses tomou dessa vez um tom mais leve e casual:
- Há quanto tempo você se formou, quero dizer, para ser professora?
- Cinco anos.
- Tudo em você é cinco? perguntou sorrindo. Aposto que você era a primeira da turma.
Ela se surpreendeu:
- Como é que você sabe?
- É que suas colegas também estavam ocupadas em viver, e você, para não sofrer, deve ter se dedicado encarniçadamente ao estudo. Aposto também como você é das melhores professoras da escola.
- Pelo mesmo motivo? perguntou sombria.
-É. Não quero dizer que os motivos de ser dos melhores sejam sempre os mesmos. Eu, por exemplo, suponho ser dos melhores professores da faculdade. Primeiro porque a matéria* sempre me apaixonou e eu esperava dela que me respondesse a perguntas, que me fizesse pensar. Tenho um prazer enorme de pensar, Lóri. Depois, por sorte, tive ótimos professores, além de simultaneamente ser um autodidata: quase todo o meu dinheiro então era aplicado na compra de livros caríssimos. Outra sorte que tenho como professor: ser amado pelos alunos. Mas eu também vivia, e continuo vivendo agora. Enquanto você é boa professora mas nem se permite talvez rir com os alunos. Depois você aprenderá, Lóri, e então experimentará em cheio a grande alegria que é de se comunicar, de transmitir.
Lóri mantinha-se calada e séria.
- Lóri, leia este poema e entenda – tirou do bolso um papel amarrotado – faço poesia não porque seja poeta mas para exercitar minha alma, é o exercício mais profundo do homem. Em geral sai incongruente, e é raro que tenha um tema: é mais uma pesquisa de modo de pensar. Este talvez tenha saído com um sentido mais fácil de aprender.
Ela leu o poema, não entendeu nada e entregou-lhe a folha de papel de volta, em silêncio.
- Se um dia eu voltar a escrever ensaios, vou querer o que é o máximo. E o máximo deverá ser dito com matemática perfeição da música, transposta para o profundo arrebatamento de um pensamento-sentimento. Não exatamente transposta, pois o processo é o mesmo, só que em música e nas palavras são usados instrumentos diferentes. Deve, tem que haver, um modo de se chegar a isso. Meus poemas são não poéticos mas meus ensaios são longos poemas em prosa, onde exercito ao máximo a minha capacidade de pensar e intuir. Nós, os que escrevemos, temos na palavra humana, escrita ou falada, grande mistério que não quero desvendar com o meu raciocínio que é frio. Tenho que não indagar do mistério para não trair o milagre. Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias. É uma grande aventura e exige muita coragem e devoção e muita humildade. Meu forte não é a humildade em viver. Mas ao escrever sou fatalmente humilde. Embora com limites. Pois no dia em que eu perder dentro de mim a minha própria importância – tudo está perdido. Melhor seria a empáfia, e está mais perto da salvação quem pensa que é o centro do mundo, o que é um pensamento tolo, é claro. O que não se pode é deixar de amar a si próprio com algum despudor. Para manter minha força, que é tão grande e helpless como a de qualquer homem que tenha respeito pela força humana, para mantê-la não tenho o menor pudor, ao contrário de você.”**
*Ulisses era professor de Filosofia
**Trecho extraído do Livro “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” Clarice Lispector